1. Quem és e como te descreverias? Qual o teu percurso (de vida, artístico, intelectual)?
- Meu nome é Freda Paranhos, sou uma travesti brasileira com 31 anos de idade que reside em Lisboa há cinco anos. Minha formação inicial é em Gastronomia e Hospitalidade, área na qual me dediquei por vários anos até perceber que meu potencial criativo transcende os limites de uma cozinha. Participei de dois reality shows gastronômicos no final da minha adolescência, sendo premiada no segundo com um curso de Chef de Cuisine e Restaurateur. Durante esse período, comecei um blog sobre gastronomia que também abordava reflexões sobre a interseção entre comida, sociedade e cultura, em uma época em que tais discussões eram escassas. Essa experiência me levou a escrever para jornais e portais, o que culminou em uma segunda graduação em Comunicação Social, buscando alinhar minhas expectativas e superar algumas frustrações.
Durante o curso, explorei novas áreas, trabalhando em agências de publicidade e meios de comunicação como copywriter e contentwriter. Uma disciplina sobre a história do cinema, noções de cinematografia e roteirização resultou na escrita e direção do meu primeiro curta-metragem, "Súbito: Sinestesia do Caos", selecionado para produção. Meu projeto de conclusão de curso foi reconhecido no renomado congresso de comunicação Intercom, onde venceu a etapa regional e posteriormente, nacional. Em 2019, após essa conquista no dia 09 de setembro em Belém do Pará, migrei para Portugal no para iniciar um mestrado em Estudos Cinematográficos na Universidade Lusófona, com foco na análise de narrativas transvestigêneres no cinema do sul global. O mestrado foi a desculpa que encontrei para uma migração forçada após a vitória de Bolsonaro nas eleições de 2018 e depois de ter sofrido inúmeras violências no país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo.
2. A que tipo de escrita te dedicas? A tua prática transita entre vários tipos de escrita ou entre várias artes?
- Em Portugal, tentei alguns editais dentro do cinema, mas nunca consegui concordar com esse fazer artístico nos moldes do que é financiado por cá. A minha última tratativa dentro dessa área foi negociar a produção de uma série documental sobre a diáspora travesti em Portugal, mas a reunião acabou se transformando numa discussão sobre a minha colaboração em uma série True Crime sobre Gisberta Salce, travesti assassinada por 14 adolescentes no Porto, para a Amazon Prime Video. Saí daquela reunião nauseada e prometi a mim mesma nunca mais negociar a riqueza e potência das narrativas trans com homens cisgêneros heterossexuais brancos e europeus. Desde então, venho trabalhando bastante no campo da performance e do teatro, escrevendo e produzindo dentro desse espaço que, apesar de não ser minha área de formação, muito tem me surpreendido. Coescrevi e codirigi com Keyla Brasil a performance "Meu Profano Corpo Santo", eleita uma das 13 melhores performances em Portugal pela Mostra PT em 2023. Com Keyla, também escrevi e estive em residência no In(Exile) Lab, financiado pela Europa Criativa, com a performance "A Alegria do Palhaço Morto". Tenho um espetáculo em fase de produção, financiado pela Direção Geral de Artes, que narra, a partir da história de Gisberta Salce, as experiências de muitas travestis que fogem do Brasil para tentar uma nova vida. Em 2022, publiquei "Broa Portuguesa" na Antologia VOLTA PARA TUA TERRA, VOL II, e fui selecionada para a edição que celebra os 50 anos do 25 de Abril com o texto "Irmã Travesti". Atualmente, trabalho como editora-chefe da Vibra Magazine, uma revista de arte, cultura, moda, música e lifestyle, que será lançada ainda este ano.
3. Sobre o que é que costumas escrever? Para quem escreves e por quê? Qual é o teu texto ou obra que tem uma relevância especial para ti, ou que te marcou como profissional, artista e como mulher? Escreves em várias línguas?
- Minha escrita abrange diversos gêneros e propósitos, desde textos institucionais até literatura e jornalismo. Escrevi o Preâmbulo do Relatório da Habitação no Contexto Migratório da Casa do Brasil e o prefácio do Manual Trans de Boas Práticas para Profissionais dos Media produzido pela Transgender Europe. Participei da antologia 25 de abril e a imigração — 50 anos com o texto "Tarântula é uma Aranha Européia" e contribuí com muitos artigos para revistas e jornais. Escrevo para lembrar que estou viva e como forma de vingança, subvertendo as estruturas coloniais que buscam nos silenciar e exterminar. Minha escrita é uma arma e uma ferramenta de resistência. O texto que tem uma relevância especial para mim é o "Esconderijo das Reminiscências", que pretendo lançar como livro em 2025.
4 – Quais são os países entre os quais te movimentaste na tua vida? Vives em Portugal desde quando? Se já não vives em Portugal, em qual período da tua vida viveste no país?
- Escrevo em Portugal, mas desde o Brasil.
5 . Quais outras mulheres são, para ti, exemplos a seguir na vida e na prática intelectual? Por qual razão?
- Tenho grande admiração pela minha parenta Hilda de Paulo, teórica, artista, curadora, escritora e dramaturga que vive na cidade do Porto, cujo trabalho transforma constantemente minhas perspectivas. Outras influências incluem Elena Ferrante, Ali Smith, Fernanda Young, bell hooks, Virginie Despentes, Letícia Nascimento, Jota Mombaça, Gloria Anzaldúa, Jaqueline Gomes de Jesus, Megg Rayara, Maria Clara Araújo dos Passos, Sueli Carneiro, Cida Bento, Denise Ferreira da Silva e Judith Butler.
6 . tua atividade de escrita (literária, jornalística ou académica) começou em Portugal, ou se desenvolveu e potenciou noutro contexto?
- Minha atividade de escrita iniciou-se no Brasil e foi potencializada em Portugal.
7. Sentes que ter um background migratório tem influenciado a tua prática de escrita? Se sim, como?
- Definitivamente. Tanto a migração quanto a transição de gênero são travessias que moldam minha escrita. Paul B. Preciado afirma em "Um Apartamento em Urano" que essas práticas de travessia desafiam as arquiteturas políticas do colonialismo patriarcal e do Estado-nação, situando os corpos nos limites da cidadania e da humanidade. Minha escrita acadêmica, literária e profissional é profundamente influenciada por essas travessias, e recuso-me a camuflar ou apagar minha identidade e experiências.
8 . Consegues – ou estás interessada em - publicar em Portugal? Se sim, onde publicas? Em caso contrário, quais as dificuldades?
- Tenho "O Esconderijo das Reminiscências" em fase final e gostaria de publicá-lo pela Editora Urutau.
9. Acreditas haver desafios específicos para as mulheres que escrevem e que têm um background migratório em Portugal? Achas que são os mesmos para todas elas, ou há questões que afetam várias mulheres dependendo das suas especificidades?
- Sem sombra de dúvidas existem desafios. A língua dentro de qualquer tentativa de vínculo empregatício, é o primeiro grande empecilho para você ser logo rejeitada. Acho que fui até muito insistente em tentar ganhar dinheiro escrevendo em Portugal. Tenho amigas pós-doutoras trabalhando como garçonetes em cafés e isso me angustia profundamente. Na academia, como muitas, já fui obrigada a traduzir minhas produções para o “Português Europeu”. Neguei, nego e continuarei negando. Sou muito gorda para caber em certos lugares. E seguirei afirmando que se um espaço for pequeno demais para que eu caiba, certamente existirão outros, mesmo que tenha que ser eu a criá-los. Citando Hilda de Paulo: “Não é esperada a intelectualidade das pessoas trans, nem da preta retinta. Vivemos ainda o eco do colonialismo”.
10. Há uma solidariedade entre as mulheres com (in)migrantes que escrevem em Portugal? Se sim, onde é que ela acontece (ex: dentro ou fora dos espaços institucionais, etc)?
- Encontro muita solidariedade dentro do associativismo, principalmente em espaços que realizam trabalhos com a população trans e migrante. Em 2023, trabalhei como técnica superior de artes em um projeto na Casa do Brasil de Lisboa, dinamizando atividades artísticas nas áreas da literatura, cinema, artes visuais, performativas e música para a comunidade migrante. Foi um processo muito bonito e de muita troca. Além disso, fundei com Keyla Brasil a Associação TransParadise, que advoga pelo direito de pessoas transvestigêneres e migrantes através da arte, cultura e comunicação. Nosso trabalho é muito político, reivindicando direitos fundamentais e participando ativamente em debates e comunicações com o governo português e outras entidades governamentais e da sociedade civil.
11. Acreditas ser devidamente reconhecida em Portugal pela tua prática artística e intelectual? Acreditas ser devidamente reconhecida fora do país pela tua prática intelectual?
- Eu não tenho essa pretensão. Acho que reconhecimento é muito relativo. Prefiro me conectar em profundidade com 20 pessoas numa conferência, workshop ou debate, que costumo me entregar de corpo inteiro com todas as minhas vulnerabilidades e a disponibilidade para discutir temas essenciais dentro de uma determinada prática artística, do que ser midiatizada e ter esse tal reconhecimento que grande parte dessa dita “comunidade” artística ou intelectual busca a toda custa. Acredito que a pertinência precisa atravessar diversas barreiras sociais, culturais, territoriais, e me sinto muito mais realizada em colaborar coletivamente dentro dessas práticas do que na construção de uma carreira em moldes neoliberais que produtifica certas práticas artísticas.