1. Quem és e como te descreverias? Qual o teu percurso (de vida, artístico, intelectual)?
- Vanessa Sanches sou, sobretudo, uma mulher negra, de 39 anos, mãe e editora de conteúdos editoriais multiplataforma. Fiz o ensino secundário na vertente Humanidades - Comunicação Social/Jornalismo, onde percebi que, em criança, quando apontavam-me como uma futura jornalista (culpa da minha curiosidade infinita) não era apenas uma crítica, poderia ser realmente uma vocação. Nessa período estudantil, aprendi que a verdade é composta de várias perspetivas e experiências e que (quase) todas merecem visibilidade na mesma medida. Foi nesse período de três anos que percebi também que há sempre um caminho por descobrir e que o meu corpo e mente só não ocupariam um determinado espaço se eu assim não o quisesse. Empurrada pela visão da minha professora da disciplina de jornalismo, fui uma das poucas estudantes a conseguir um estágio no meio de comunicação social, o jornal regional O Correio da Linha.


A experiência comprovou-me que tinha vocação e que era possível trabalhar na área apesar de, na altura, já ouvir dizer que era um sector saturado e desgastado. Conclui o estágio e ali fiquei a trabalhar enquanto jornalista júnior. Sempre tive sede de criar e de conhecer mais do que a minha bolha e a estagnação sempre me causou incómodo. Passados dois anos, o facto de trabalhar num ambiente muito pequeno e que pouco valorizava as competências dos seus profissionais, decidi que precisava mudar. Procurar emprego na área acabou por tornar-se inglório, e ingrato, porque a formação académica universitária, em Portugal, sempre foi o único atestado de competência em detrimento da experiência. Acabei por emigrar para França, onde ingressei na faculdade, em Gestão de Empresas. Se em Portugal as possibilidades de singrar na Comunicação eram reduzidas, em França, para uma mulher negra imigrante seriam mais ainda. Ou, pelo menos, era o que eu julgava na altura. Escolhi Gestão pela facilidade. Claro que não conclui a licenciatura. As contas e os relatórios seguem padrões que estão longe da criatividade e da dinâmica que sempre me atraíram. Regressei a Portugal e voltei a conseguir entrar no mundo do jornalismo através do SAPO, o primeiro e principal portal de informação português. Passei pelo SAPO Internacional, fui para Angola enquanto jornalista e acabei por tornar-me coordenadora editorial do projeto. Fui entretanto editora do primeiro e mais revolucionário meio de comunicação digital de Angola, o Rede Angola. Empurrada por um ex-colega do SAPO, acabei por tornar-me empreendedora, ao lançar a primeira plataforma de informação dedicada à lusofonia negra, a BANTUMEN. Projeto que dirijo há praticamente dez anos. É a contar as histórias de pessoas que a mim se assemelham que me encontro. Em Portugal, num espaço mediático onde a presença de pessoas negras, que fazem parte do tecido cultural português, são invisíveis, encontrei o meu papel enquanto potenciadora da visibilidade dessas realidades.

2- A que tipo de escrita te dedicas? A tua prática transita entre vários tipos de escrita ou entre várias artes?

- Atualmente, infelizmente, a minha prática escrita transita, sobretudo, entre as palavras de outros jornalistas, como editora, mas sinto-me impelida a escrever quando vejo o potencial de artistas emergentes cujas histórias de sucesso antevejo nas suas atitudes e passos. Além do jornalismo cultural, gosto também de escrever sobre casos sociais que, ganhando espaço na opinião pública, podem empurrar decisores a criar soluções.

3. Sobre o que é que costumas escrever? Para quem escreves e porque? Qual é o teu texto ou obra que tem uma relevância especial para ti, ou que te marcou como profissional, artista e como mulher? Escreves em várias línguas?

- Sobre o que gosto de escrever, respondo acima. Para quem escrevo nunca foi um tema em que me tivesse debruçado. Escrevo sobre pessoas afrodescendentes que merecem atenção de qualquer público. Jovens artistas, empreendedores que criam soluções de impacto ou que, apesar de todas as barreiras sociais e económicas, dão mostras de resiliência e sucesso. Portanto, escrevo para novos e velhos que acreditam que todos podemos ser e estar onde queremos.

O que escrevi que mais impacto criou nas minhas dinâmicas profissionais e no que viria a escrever mais tarde, escolheria o Histórias de Ninguém. Era uma rubrica criada por mim e por Edwaldo Pegado, na altura enquanto jornalistas do SAPO Angola, e que retratava estórias e histórias de pessoas comuns, cujos perfis cruzávamos diariamente e que, ao mesmo tempo, eram invisíveis. Uma prostituta, um lavador de carros, um engraxador de sapatos e uma zungueira (vendedeira ambulante) foram algumas das pessoas que passaram pelo Histórias de Ninguém, a primeira rubrica viral da imprensa angolana, graças às redes sociais. Infelizmente, o fim do projeto SAPO Internacional ditou o apagamento de todo um trabalho jornalístico de mais de uma década, de dezenas de profissionais, e de histórias como estas.

4.  Quais são os países entre os quais te movimentaste na tua vida? Vives em Portugal desde quando? Se já não vives em Portugal, em qual período da tua vida viveste no país?

- Movimento-me entre França, onde vivo - a vida voltou a empurrar-me para este país por questões familiares - e Portugal, para onde viajo, no mínimo, uma vez a cada dois meses. Portugal é onde está implantada a BANTUMEN, que faz a ponte entre sete países (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe).

5. Quais outras mulheres são, para ti, exemplos a seguir na vida e na prática intelectual? Por qual razão?

- Na vida, a minha avó é a primeira desse conjunto. É uma mulher brava, pilar de uma família, que, apesar de todas as adversidades (guerra, solitude, pouca instrução, doença…), sempre encontrou soluções para ela e para os seus. Na prática intelectual, e olhando para o que o mundo é hoje, poderia indicar várias, mas escolho uma jovem francesa, de nome Sally. Jurista, com o dom da comunicação, que escolheu as redes sociais para criar uma poderosa plataforma para descodificar o universo da política e aproximá-lo dos jovens. Foi, inclusive, umas das personalidades chave que incitou uma massa de jovens a votar nas últimas legislativas francesas, por forma a fazer frente ao poder crescente da extrema-direita no país. A educação social e política é onde acredito estar um dos pontos de transformação do mundo tal como o conhecemos hoje por isso admiro o seu trabalho. Ainda na questão intelectual, escolho também Bárbara Carine, escritora e professora brasileira de filosofia e química, fundadora da primeira escola afrocentrada brasileira e que ganhou destaque também no universo das redes sociais pela forma simples e descomplicada como aborda assuntos sociais, principalmente raciais, e pela sua normalização do seu corpo negro, enquanto mulher académica de renome e que ocupa também vários outros espaços e facetas do seu ser.

6. A tua atividade de escrita (literária, jornalística ou académica) começou em Portugal, ou se desenvolveu e potenciou noutro contexto?

- Começou em Portugal, como indico acima.

7. Sentes que ter um background migratório tem influenciado a tua prática de escrita? Se sim, como?

- O meu background migratório começou gerações antes de mim. A minha família é de origens cabo-verdianas. Do meu lado materno, a minha avó, aos vinte e poucos anos, decidiu sair de Cabo Verde numa época em que a fome e a morte eram a única certeza. Rumou para Angola, a pérola dos territórios ultramarinos, e arrastou com ela a filha e as irmãs. Ali fundaram raízes e subsistiam às suas necessidades e às da família que ficou em Cabo Verde. A minha avó teve uma segunda e última filha - a minha mãe - e, passados cinco anos, a guerra colonial chegava ao seu expoente. O medo da morte e as atrocidades a que assistiu - que condicionaram a sua saúde até aos dias de hoje - levaram a minha avó a migrar novamente. Consegui viajar até Portugal, apenas com as duas filhas e as roupas do corpo. Essa migração moldou o que viria a ser a minha vida. Sou filha e neta de imigrantes, africanos, que sempre serviram. Levantavam-se antes do amanhecer para servir e ganhar o suficiente para sobreviver condignamente. Conheceram apenas esse papel de subserviência e acreditaram - e acreditam ainda - que esse sempre foi a sua única função social. E assim moldaram a sua prole. Sempre respeitaram todas as regras que lhes foram ditadas e, ainda assim, pouco respeito receberam fora da sua bolha de imigrantes negras. Sobretudo, o que lhes era devido por direito de um Estado social e democrata. Felizmente, o conhecimento é uma porta aberta para novos caminhos e vidas. A minha experiência foi moldada pelas experiências da minha avó e da minha mãe mas a minha condição - enquanto ser que tem poder de receber informação de outras experiências - permitiu-me ver outras possibilidades. Viajei para vários países e percebi que, generalizando, a realidade africana ou afrodescendente, em África ou na Europa, tem muitas semelhanças. Há um lugar não comum de liberdade. Sem mencionar a autocensura que é preciso ultrapassar, poucos se permitem ir além das fronteiras invisíveis que lhes são impostas. É naqueles que arriscam que inspiro-me para criar, escrever e dar continuidade ao projeto que desenvolvi.

8. Consegues – ou estás interessada em - publicar em Portugal? Se sim, onde publicas? Em caso contrário, quais as dificuldades?

- Publico na BANTUMEN.com. A única dificuldade é este não ser uma fonte de rendimento estável, por conta de todas as dificuldades que o empreendedorismo implica, aliadas ao facto de este ser um projeto focado numa minoria social.

9. Acreditas haver desafios específicos para as mulheres que escrevem e que têm um background migratório em Portugal? Achas que são os mesmos para todas elas, ou há questões que afetam várias mulheres dependendo das suas especificidades?

- No meu caso, que diz respeito à comunidade negra, diria que a melhor forma de responder a essa questão seria ir às universidades e faculdades de Comunicação/ Jornalismo, observar a quantidade de mulheres negras que se formam na área e a quantidade que consegue efetivamente trabalhar nas redações pelo país afora. A discrepância é gigantesca. Por experiência própria e pelos relatos que me chegam de tantas outras profissionais, a responsabilidade atribua-a à discriminação racial que existe em qualquer instituição portuguesa.

10. Há uma solidariedade entre as mulheres com (in)migrantes que escrevem em Portugal? Se sim, onde é que ela acontece (ex: dentro o fora dos espaços institucionais, etc)?

- Existem cada vez mais projetos independentes de jornalismo que olham para estas relações de uma forma muito mais próxima e humanizada. Não sei se lhe chamaria solidariedade, mas há uma vontade maior - nesta bolha - de criar espaço para outras narrativas e experiências.

11. Acreditas ser devidamente reconhecida em Portugal pela tua prática artística e intelectual? Acreditas ser devidamente reconhecida fora do país pela tua prática intelectual?

- Eu, em particular, sinto que há um certo reconhecimento - mesmo que ele não seja visível em termos financeiros, individuais ou no projeto que lidero. No entanto, o que é esse reconhecimento? Dos meus pares? Sim, caso contrário, não receberia alguns convites para entrevistas ou debates. Prémios? Nunca me candidatei a nenhum. Da comunidade sobre a qual dedico a minha vida profissional? Sim, alguns reconhecem o trabalho que faço e a sua eventual importância. Ainda assim - sem qualquer prepotência - o único reconhecimento que realmente valido é a realização do propósito para o qual trabalho: as histórias sobre as quais escrevo ganharem visibilidade na esfera pública - o que lhes permite que (a nível individual e coletivo) outras portas se abram para novas oportunidades.