- Acreditamos que o movimento plurinacional Wayrakuna nasceu desde que a primeira caravela. atracou em nosso território sagrado, hoje apelidado de Brasil. Nasceu dessa inquietude e revolta, diante das reiteradas caravelas que não param de aportar por essas bandas desde então. Nasceu da convergência de forças Originárias e de vidas que reiteradamente têm sido violentadas por tudo o que o machismo representa e, diante disso, em 2017, movidas pela força da nossa grande mãe Wayra-Wayrakuna, Wayra-ventania na língua Aymara, nós Wayrakuna - Filhas da Ventania, nos unimos para dizer: respeitem nossos corpos que são a extensão dos nossos territórios geográficos ancestrais. Lutamos para que a dignidade da pessoa humana do ser indígena seja respeitada. Nosso maior princípio é semear a vida e polinizar o bem viver.
2. Pelo que percebi, o feminismo ocidental não é "reconhecido" pelas mulheres indígenas. Gostaria de saber qual é a tua (e das Wayrakunas) relação com o feminismo e se existe algum feminismo com o qual te identificas.
- Sobre esse assunto, gostamos de ir direto ao ponto sem rodeios. Não acreditamos que seja possível a existência de um feminismo indígena. Não aceitamos jargões do tipo "a luta feminista. é a mãe de todas as lutas". Calma, não é bem assim... respeitar as caras é bom e mantém os ossos no lugar. Quando a luta pela nossa existência nesse território começou, nem humanas éramos consideradas pelos invasores, menos ainda mulheres e mesmo assim, saber falar o idioma colonizador, nossas antepassadas já lutavam bravamente contra a instalação do estado moderno nesse território. Então dizer que um movimento devedor do modernismo é a mãe da nossa luta indígena é um tanto prepotente. No entanto, a medida que a consciência de gênero. começa a nos alcançar, faz sentido nos unirmos a ela. Porque independente de sermos Originárias ou não, sabemos a dor que o machismo causa em nós, todas as vezes. que somos violentadas e vilipendiadasem nossos direitos mais básicos por conta do gênero que impuseram em nós, goela abaixo. Por isso, nos identificamos como indígenas-feministas e não feministas-indígenas. Pode parecer só uma inversão de palavras, mas não é. Não nos consideramos mulheres indígenas e, sim, indígenas-mulheres, pelo mesmo motivo exposto acima: o gênero veio depois do nosso fim em si próprias. Procuramos dialogar com o feminismo comunitário, com o Ecofeminismo e com o feminismo negro.
3. Sei que as Wayrakunas são também um grupo de pesquisa. Neste sentido, qual é a vossa relação com a academia e, em geral, quais os vossos objetivos de investigação
- Durante séculos, fomos para a academia objeto; seres sem alma, considerados atraso para a nação; seres com uma espiritualidade inferior e, portanto, precisávamos de ser domesticadas e enjauladas, fato que justificou a nossa escravidão e depois tutela. Até hoje vivemos isso nas academias com a famosa "Grade Curricular" que tem engessado os saberes e impedido o diálogo entre os indígenas e os não indígenas, dificultando o interculturalismo de acontecer. Nós, enquanto Wayrakuna, lutamos com todas as nossas forças pela permanência das indígenas-mulheres na universidade, um lugar hostil e epistemicida, para garantir que ali sejam criadas ciências que caminhem de acordo com as nossas epistemologias ancestrais. Produzindo um conhecimento científico que não fira a dignidade dos nossos corpos. Com uma cosmometodologia de práxis ancestral. Nossa intenção é criar uma historiografia que se coaduna com a realidade que os povos Originários representam, não só no Brasil, mas para a humanidade. Atualmente, sou graduanda em Direito e estudante de Moda. E dentro dessas áreas, procuro me envolver em temas que possam descaravelizar tanto o direito, que é dogmático e nitidamente positivista, quanto a moda, quando apresento para a sociedade ao meu entorno uma nova perspetiva estética. Assim como eu, outras parentas - como nos chamamos carinhosamente - também pesquisam temas relacionadas com as suas áreas de atuação na academia.
4. Como sabes, o nosso projeto foca-se na literatura escrita por mulheres; assim, gostaria de saber qual é, na tua opinião e experiência, o papel desempenhado pelas mulheres indígenas na literatura brasileira?
- A literatura indígena, durante muito tempo, foi rechaçada pelos cânones da literatura. Chamavam de tudo menos de Literatura Indígena. Nós, por outro lado, continuamos a escrever e ressignificar o que tenta nos paralisar através da escrita de nossas histórias cosmológicas na tentativa de reencantar as relações. Hoje, termos um indígena, Ailton Krénak, como membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) é o resultado de muita dedicação; em breve, teremos uma indígena-Mulher ocupando a cadeira da ABL.
5. Quais são as tuas inquietudes como pesquisadora, escritora, divulgadora, mulher indígena?
- São muitas... precisaria de, pelo menos, 19 laudas para falar sobre o que passamos enquanto escritoras, mas posso dizer uma apenas: editoras querem vender romantismo; querem que transformemos as nossas cosmovisões em literatura, mas não querem saber das dores que atravessam essas visões de mundo.
6. De que forma a literatura hoje pode ser considerada um meio de transmissão útil para a luta indígena?
- Através dela demonstramos que respeitar as outras formas de vida é possível. Coexistindo com tudo o que gera vida ao nosso redor. Temos conseguido avançar em grande medida na defesa dos direitos indígenas, graças à força encantadora da literatura.
7. Como nasceu o teu contributo para a antologia Nós: Uma Antologia de Literatura Indígena?
- Foi meu primeiro texto e escrevi em coautoria com meu companheiro. Fala um pouco dos desafios doa afetos na contemporaneidade nos territórios Originários. Em breve, será publicado o A Árvore que segura o Céu de autoria própria. Aguardem!
8. Voltando à luta e ao ativismo, como nasceu a Marcha das Mulheres Indígenas e que impacto tem tido e tem dentro do panorama político e cultural brasileiro?
- Diante de muitas discussões e cooperações internacionais, apontamos para a necessidade de apoio para que as nossas demandas fossem observadas. Então, em 2019, entre os dias 9 e 14 de agosto, aconteceu a primeira marcha das mulheres indígenas com o tema Meu Corpo, Meu Espírito. E o resultado disso é o que se vê: as indígenas-mulheres em peso ocupando cargos de gestão e funções importantes para a emancipação dos nossos corpos Originários. Atualmente, temos mulheres em lugares de grande relevância, tais como: presidenta da FUNAI, Ministra no Ministério dos Povos Indígenas que foi criado no atual governo, uma bancada forte na câmara dos deputados intitulada a "Bancada do Cocar", as indígenas-mulheres estão revolucionando esse país!
9. Para concluir, e agradecendo do coração a tua participação e contribuição para esta entrevista e projeto, qual é o significado, na tuaopinião, do Dia Internacional da Mulher Indígena?
- Por onde as caravelas passaram, a destruição foi a mesma. Nossos corpos e almas violadas. Nesse dia, evidenciámos o nosso apoio incondicional e o nosso amor é culto ao Espírito coletivo que tem nos coberto ancestralmente. Qualquer tentativa de explicar o que isso significa seria em vão, pois só quem tem uma espiritualidade Originária sabe o que isso significa. Não se trata de união só por dor, mas de união por bril. Não é à toa que somos conhecidos por dançar na chuva e cantar para o sol. Sabemos como nos portar nos dias de sol e nos dias de chuva e cá estamos a resistir para existir.
FL: Obrigada, Aline. Vemo-nos em breve para continuarmos esta maravilhosa troca.